Sopranos: A TV nunca mais foi a mesma


Entre 1999 e 2007, a série de TV Os Sopranos foi um dos melhores romances, uma das melhores peças de teatro e uma das mais intrigantes obras de arte em exibição. David Chase, o criador, concretizou a proeza de escrever um livro de imagens em movimento (porque é disso que falamos quando se pensa n’Os Sopranos), levando a cabo um projeto, demorado e estruturado, em que permaneceu fiel ao final que, desde o primeiro plano, estava obcecado em atingir. O facto de não perder a perspectiva, de permanecer fiel a si mesmo e à obra de arte, era algo, a esta escala, inédito na TV. À falta de melhor termo e a meu ver, Os Sopranos inauguram uma nova forma de arte através da reinvenção de uma outra, a série de TV.


O protagonista é Tony Soprano, patriarca de uma família composta pela mulher e por um casal de filhos, e chefe de uma outra, esta mafiosa, de Nova Jérsia. É dele o ponto de vista de toda a série, os olhos pelos quais olhamos e julgamos os comportamentos e os acontecimentos. O compromisso dos criadores é para com Tony Soprano, o arquetípico Hamlet, o centro sobre o qual todos os outros personagens irrevogavelmente gravitam. Ao longo das seis temporadas que compõem a totalidade da série, somos presenteados com os diversos oponentes (quer sejam eles amigos ou inimigos) que se passeiam pela vida de Tony, uma soberba personalidade alfa que, de forma inata e devastadoramente inteligente, decide a trama e a tragédia. Mas ele não é a torre de força que aparenta ser.

Uma das mais conhecidas narrativas d’Os Sopranos é o facto de Tony sucumbir, desde o início, a ataques de pânico que o obrigam a recorrer a uma psicóloga (o facto de ser uma mulher não é, de todo, despropositado, tendo em consideração o papel do género feminino na vida de Tony). Estas consultas funcionam como momentos de catarse para o personagem e de informação para o espectador (mesmo que de forma vaga e quase insubstancial). A Dra. Jennifer Melfi é o coro de toda a série (no sentido grego e teatral do termo), aquela que comenta, de forma pós-modernista e recorrendo a instrumentos cientificamente balizados, a vida do personagem principal e as temáticas universais tão deliciosamente focadas na série. Que a voz de um instrumento narrativo clássico como o coro seja transferida para psicanálise é provavelmente um comentário ao século XX e às mudanças epistemológicas e filosóficas que este testemunhou (esta é exclusivamente a minha opinião). Este foi um século de mudança de paradigma no que respeita à interpretação do real, um momento fraturante entre uma forma mística/religiosa e outra científica de pensar, mudança essa também conseguida graças à obra e vida de Sigmund Freud, o fundador da psicanálise.


A primeira temporada aborda um dos elementos mais queridos à psicologia: o complexo de édipo. Como não poderia deixar de ser, a raiz de todos os males são os primeiros anos, os momentos infra-estruturais da nossa vida. E a mãe, paradigma máximo da educação, é o construtor dos elementos importantes que nos regem, mais ainda numa sociedade do estilo latino como é a d’Os Sopranos, onde o elemento feminino do casal de progenitores possui uma influência quase omnipotente no comportamento e personalidade dos filhos. É com esta “antagonista” que Tony se vê confrontado logo no primeiro grande volume da série, mas sempre numa perspectiva pós-modernista com o problema, onde os autores, uma vez mais, procuram fazer uma análise do século XX.

Outros dos pontos chave para o sucesso e profundidade da série foram os seus atores, verdadeiros golpes de génio de casting, tornando-se, todos eles e sem esforço, na carne e no osso das ficções concebidas por David Chase. James Gandolfini no papel de Tony Soprano, especialmente, é um tour-de-force que acabaria por balizar todos os protagonistas de outras séries de culto que se lhe seguiram, quer falemos de Jon Hamm em Mad Men, quer Brian Cranston em Breaking Bad, apenas para dar dois exemplos. Gandolfini imprimiu trejeitos, gestos, forma de andar, tiques nervosos, numa personalidade já de si sólida e substanciada, transferindo-lhe uma tridimensionalidade que transportou, de forma inesquecível, o personagem do papel para o ecrã. Mas não foi apenas ele. Edie Falco como a sua mulher, Carmela Soprano, Michael Imperioli como o sobrinho e braço direito, Christopher Moltisanti, e Nancy Marchand como a mãe, são todos exemplos da qualidade do elenco. Curiosamente, o casting fez o esforço para recrutar apenas atores de ascendência italiana para os papéis em que essa verosimilhança física era importante.


A última cena é consistente com toda a série: um plano final enquadrando Tony. Obviamente que não vou aqui revelar o final, mas para os que não o viram ainda, as derradeiras cenas da série foram alvo de acalentadas discussões em virtude da ambiguidade gerada. Até hoje muitas são as opiniões quanto ao que realmente acontece. David Chase acabou a série sem dar respostas definitivas. Provavelmente sabe que, tal como Neil Gaiman disse e passo a parafrasear, não é o segredo revelado que dura, mas antes o mistério.



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