Michel Deviliers é um professor reformado de matemática cuja esposa morreu há 29 anos e, desde então, vive sozinho num apartamento pejado de livros e filmes, imerso na
solidão, a que apelida como sua eterna companheira, e nas investigações que o ajudam
a aguentar as longas manhãs, tardes e noites. Um dia, uma jovem rapariga é
agredida nas escadas em frente ao seu apartamento e, movido pela bondade, acolhe-a e ajuda a curar as suas feridas. Esta jovem mulher será,
obrigatoriamente, uma tábua de salvação, não tanto física mas metafísica,
de um senhor que, paulatinamente, substitui a sua eterna companheira de
29 anos.
Este filme é, antes de mais e perdoem o lugar comum, uma carta de amor
ao cinema. A produção foi feita utilizando a casa do próprio
realizador e os atores confundem-se com a equipe (ele próprio e a assistente de
realização são os protagonistas). Jean-Claude
Brisseau é um homem profundamente extasiado com toda uma vida que parece se
verter na hora e meia que realiza. Este é um filme, como disse Luís Miguel Oliveira
no Ipsilon, profundamente outonal,
em que o realizador escolhe fazer um balanço onírico de uma vida, das várias
crenças que o motivaram (mesmo aquelas em que nunca acreditou), construindo uma
belíssima narrativa que, não procurando dar resposta a nenhuma questão, procura encontrar uma solução (mesmo que vaga) para as
inquietudes que o avassalam. E essas inquietudes são também aquelas que nos motivam, a uns de uma forma mais explícita do que a outros. O prazer de encontrar uma
razão para este estar aqui, estas perdas que sofremos, os caminhos que gostaríamos
de ter escolhido.
Jean-Claude Brisseau segura a narrativa e a câmara como um homem possuído das (in)certezas
da idade, mestre no cinema, adorador de outros génios (pelo menos dois filmes
de Hitchcock são citados no enredo: Vertigo e Psycho), através do seu virtuosismo percebemos que a sétima arte é
muito mais que grandes orçamentos e tecnologias dispendiosas. Ela é a
capacidade de erguer um edifício alicerçado numa excelente história, contada
com os pequenos artifícios imagéticos ao dispor do cinema. Sim, este trata-se
de um belíssimo filme crepuscular, onde o artista tenta fazer sentido das várias
pontas soltas que constroem uma vida. Com sorte, consegue ainda dar uma pista para
todos nós. Mas apenas uma pista, porque de respostas definitivas está o inferno
cheio.
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