Como é que a casa do Super-Homem chegou a isto?

Foi recentemente anunciado pela DC Comics, parte da dupla sagrada de editoras gigantes dos EUA (a outra é a Marvel), que um dos seus mais emblemáticos escritores iria abandonar um dos títulos que o fez famoso. O autor é Geoff Johns e o título é o Lanterna Verde (no original, Green Lantern). Era natural este anúncio, já que Johns escrevia a série desde Dezembro de 2004, tendo sido responsável pela maior revolução criativa que este personagem tinha visto nos seus 70 anos de vida. Johns fez o mesmo que Frank Miller fez com o Demolidor. Tornou-o seu.

Acaba aqui uma era desta editora norte-americana de BD. Um fim anunciado há já algum tempo. O fim da DC Comics virada para a obra de autor no seu universo mainstream de super-heróis. Durante duas décadas foi possível produzir obras finitas, fechadas e idiossincráticas no sempre hermético mundo dos homens de collants. Foi possível a excepção e o excepcional, a experimentação, o puro gozo de tentar um novo prisma, uma nova visão, testar as águas, nem sempre com sucesso mas sempre com personalidade.

Recuemos para 1986, considerado por muitos como o melhor ano da BD americana (comics) muito por culpa de duas obras lançadas por esta editora que, à altura, estava nos estertores da morte. Resolveu esquecer o método antigo de fazer as coisas e tentou o novo, o imprevisível, o adulto, o singular. Se, por um lado, as obras The Dark Knight Returns de Frank Miller e Watchmen de Alan Moore e Dave Gibbons foram responsáveis por uma das maiores revoluções nos comics até à data, por outro, a DC decidiu, pela segunda vez na sua história, fazer um reboot no seu universo dos super-heróis, recomeçando quase tudo do zero (não foi bem assim, mas isso é conversa para outra altura). O efeito-dominó destas duas mudanças de paradigma foi tão imprevisível como explosivamente criativo.

Ao abrir as portas à reinvenção e ao trabalho autoral a DC permitiu o aparecimento de obras que, até hoje, são consideradas únicas de talento e inventividade.

Existiram, por um lado, as firmemente inseridas no universo e continuidade dos super-heróis (nota - continuidade é a consistência de histórias e características dos vários personagens e eventos num mesmo universo fictício). Entre 1988 e 1990 pôde ler-se Animal Man de Grant Morrison, em que o escritor escocês consegue imprimir num conceito aparentemente ridículo (um homem que emula os poderes de todos os animais) reflexões meta-textuais sobre a BD e outras sobre ecologia e messianismo (este usando o Coiote do desenho animado do Bip-Bip). Fizeram-se incursões no campo da comédia, em que Keith Giffen e J.M. de Matteis decidiram usar o nome do maior grupo de super-heróis da DC, a Liga da Justiça, em situações verdadeiramente hilárias, provando que a fórmula não se resume a seres ultra-musculados à porrada uns aos outros enquanto o destino de uma dama indefesa pende na balança (ou um gato, pode também ser de um gato, que existe sempre um preso no topo de uma árvore pronto a ser salvo). Por falar na Liga da Justiça e em Grant Morrison, não podemos esquecer a JLA deste escritor e do desenhista Howard Porter, uma ópera em vários actos envolvendo os maiores super-heróis do planeta. E, na sequência, a JSA de Geoff Johns, em que o legado e a herança histórica desempenhavam um brilhante papel. Tal como no Flash de Mark Waid e outra vez no de Geoff Johns. Ou o Young Justice de Peter David e Todd Nauck, protagonizada pelos parceiros adolescentes dos mais importantes super-heróis. E a lista continua. Todos estes autores usaram as muitas ferramentas típicas dos super-heróis e construíram universos e histórias que representam até hoje uma herança digna e maciça.

Existiram também as obras finitas que, ainda que inseridas na referida continuidade, pouco ou nada deviam a ela, existindo à sua margem sem a perturbar ou sem serem perturbadas. Starman de James Robinson (escritor) e Tony C. Harris e Peter Snejberg (desenhistas) abraçava o legado histórico das mais de cinco décadas do universo da DC e expandia-o, não tanto pelos personagens e eventos mas pela sua visão, estilo e alma. Uma obra pessoal em que os super-heróis são o estilo e não a forma. Neste campo existe também o ao mesmo tempo hilário e mega-violento Hitman de Garth Ennis (escritor) e John McGrea (desenhista). Ennis é conhecido por odiar todos os super-heróis, excepção feita ao maior deles todos, o Super-Homem, mas foi capaz de escrever um dos mais preciosos e esquecidos tesouros da biblioteca desta editora.

Outras obras houveram, menores por causa do tempo em que conseguiram permanecer nas bancas, mas que da mesma forma marcaram a visão desta DC. Major Bummer, Chase ou Cronos, para lembrar apenas três numa multitude de belos falhanços.

Infelizmente, esta DC não existe mais. Ocorreu algo que inverteu este caminho trilhado desde 1986. A guinada foi no sentido da interligação entre todas as BD do universo DC de super-heróis, o que, inevitavelmente, leva à castração da criatividade por via do imperativo editorial. A larga maioria das histórias estavam agora direcionadas para uma ampla visão em que tudo estava ligado a tudo, em que cada autor não pode ir para direita com medo de passar por cima do caminho do outro.
Não existe mais a DC que entregava um personagem a um autor sem compunções e sem os grilhões da continuidade (hoje em dia um monstro sagrado e cada vez mais castrador). Sem o prender a mega-eventos que arrastam tudo e mais um par de botas para uma obra megalómana que, mais vezes do que não, cede sob o seu próprio peso. Sem cegos ditames editorais que mais depressa defendem a integridade de um franchise e menos as histórias que o construíram ao longo de 7 décadas. O interessante é que desde 1986 que estas mega-sagas são recorrentes, mas raramente tão omnipresentes como as mais recentes.


Claro que existem excepções, como sempre, mas cada vez mais raras (lembro-me de uma, a Mulher-Maravilha de Brian Azzarello e Cliff Chang). Assim sendo, espero pelo dia em que possa algures dizer que este post não tem mais validade. Até lá… continuo a escolher aquilo e aqueles que leio.

4 comentários:

Nuno Amado disse...

Estou de acordo contigo em quase tudo. E mesmo neste reboot os título "independentes" são os que mais sofrem com mudança de equipas criativas e cancelamentos...
Isto já para não falar da redução da Vertigo a uma imprint descartável...
:(

SAM disse...

Eu adorava a DC. Foi a minha editora favorita durante largos anos, Tenho e releio estas BD que refiro sempre que posso e o tempo mo permite. Infelizmente, desde uma determinada altura (na minha opinião, a entrada do Didio) essa DC desapareceu.

Nuno Amado disse...

Mesmo assim, com estas últimas falhas consigo ainda comprar e seguir alguns títulos da DC, porque da Marvel praticamente é zero neste momento...
:D

SAM disse...

Continuo a comprar títulos de qq uma das duas. ;-) Da DC por exemplo a Mulher-Maravilha, claro, o Super-Homem do Morrison e mais umas coisas. Da Marvel ainda compro alguma coisitas. Ainda que eles tb tenham a necessidade de ir de maga-evento a mega-evento acho que ainda conseguem fazer qq coisa mais autoral. Sim, mas claro que sempre com interrupções atrás de interrupções. É até ver. Acho que por exemplo os Avengers do Hickman pode ser que tenha alguma coisa interessante.